segunda-feira, 18 de agosto de 2014

As Humanidades precisam da Ciência (mas a Ciência não precisa das Humanidades)

Quando discutimos a relação entre a Ciência e as Humanidades [0], é comum encontrar quem nos diga algo do género: é preciso mais diálogo porque todos ganhamos em espreitar o que "o outro lado" está a fazer.

Compreendo o sentimento por trás destas declarações piedosas, mas a verdade é esta: os cientistas não precisam do trabalho das Humanidades para trabalhar (com uma excepção significativa a que voltarei); já os académicos das Humanidades podem (e devem) usar os resultados dos cientistas para o seu trabalho.

Porquê? Ora bem, se pensarmos nos vários fenómenos do universo, começando pelos mais simples (partículas subatómicas — simples no sentido físico e não no sentido da dificuldade em compreendê-los) e terminando nas acções complexíssimas dos seres humanos (o cérebro é o objecto mais complexo que já encontrámos no universo), podemos afirmar que os fenómenos de nível superior (mais complexos) podem ser explicados tomando partido fenómenos do nível imediatamente inferior (que também serão explicados pelo nível inferior, etc.). Assim, a física ajuda a compreender a química; a química ajuda a compreender a biologia; e a biologia ajuda a compreender vários aspectos da espécie humana que são objecto de estudo das Humanidades. [1]

O contrário não se aplica: a biologia ajuda pouco ou nada a compreender a química; a química ajuda pouco ou nada a compreender a física. E muito menos a História, a Geografia, a Filosofia, etc. ajudarão a compreender fenómenos físicos. Um físico não precisa de saber História para compreender o seu objecto de estudo. O historiador já poderá precisar de compreender um pouco de física para compreender o seu objecto de estudo — e sem dúvida que irá beneficiar se estudar um pouco de biologia para perceber melhor o comportamento da espécie que está a estudar: o homo sapiens

Quer isto dizer que o cientista deve ignorar as Humanidades? Claro que não! O cientista é um ser humano; deve ter alguma curiosidade que não se limite ao seu objecto de estudo. As Humanidades interessam a toda a humanidade — ou, pelo menos, deveriam interessar. [2] 

Portanto, as Humanidades não servem para o trabalho dos cientistas, mas são importantes para os cientistas enquanto pessoas. A Ciência serve para o trabalho das Humanidades — e pode acontecer que não sejam assim tão interessantes para os académicos das Humanidades enquanto pessoas.

Um dos pontos em que esta relação assimétrica é mais visível é no caso da Teoria da Evolução: este modelo explicativo originário da Ciência é importantíssimo para as Humanidades (todas elas, presumo). Não devemos ter vergonha em usá-lo para tentar explicar os fenómenos humanos.

***

Outra questão interessante será saber o que fazem alguns cientistas pelos terrenos das Humanidades. A Terceira Cultura [3] é, no fundo, a utilização dos resultados dos cientistas envolvidos pelos próprios cientistas para explicar fenómenos da área das Humanidades. Devemos recusar esta invasão? Nem pensar: devemos, antes, aceitar estas contribuições, feitas por quem está habituado a pensar rigorosamente e por quem conhece como ninguém os resultados científicos que têm impacto no estudo destas questões. Se não concordarmos, podemos participar no debate. Agora, dizer que não podem entrar porque não são das Humanidades é um tribalismo intelectual inaceitável.

[0] Uso aqui os termos de forma um pouco vaga: Ciência serão as Ciências Naturais e Humanidades serão as Ciências Sociais, a Filosofia, a História, etc.
[1] Saltar um nível não será fácil: estudar as partículas subatómicas ou questões de física newtoniana dificilmente poderá explicar muita coisa no âmbito das Humanidades (excepto, talvez, questões de limitação física de determinadas acções humanas). Podem, talvez, ajudar a desmontar ideias falsas, o que já não é mau.
[2] E a culpa da falta de interesse também deriva da forma fútil como algumas Humanidades encaram o seu objecto de estudo.

domingo, 17 de agosto de 2014

A lógica cristalina dos genes

Estou a ler The Selfish Gene. A escrita de Richard Dawkins é vibrante e uma mente curiosa só quer ler mais e mais. Mas não se enganem: não é a escrita que é importante aqui — são as ideias.

Apesar de algumas tentativas recentes de mandar abaixo esta metáfora genial do gene egoísta (talvez menos por razões científicas e mais pelos anticorpos criados por Dawkins com o seu proselitismo ateísta), a verdade é que aquilo que aprendemos neste livro é isto: a Teoria da Evolução é tão lógica e clara que era inevitável.

Ou seja, se de facto temos genes, se existem mutações e se não temos recursos infinitos para manter uma população sempre em crescimento, é óbvio que os genes mais bem talhados para sobreviver em determinado ambiente irão reproduzir-se em maior número até substituírem os genes que lhes fazem concorrência directa. Por outro lado, os genes não pensam: existem, apenas. Ou seja, não podem combinar fazer isto ou aquilo — não podiam deixar de ser egoístas: se há formas de se reproduzirem em maior número, como poderiam decidir não o fazer? Ou bem que sobrevivem ou bem que não sobrevivem: apenas a sua adequação ao ambiente decide o que acontece. É um processo cego, aleatório mas inteiramente lógico.

Destas premissas simples, constrói-se todo o edifício da Teoria da Evolução, que não só explica, como prevê sem enganos o que acontece no mundo.

Não vão por mim, claro. Leiam o livro.


(Para quem tem medo do título: dizer que os genes são egoístas não quer dizer que nós, enquanto seres de nível muito mais elevado do que os genes, devamos ser egoístas. Até pode ser que tenhamos tendência para isso, mas não quer dizer que tenhamos de aceitar cegamente o que os nossos instintos nos dizem. O próprio autor desfaz este equívoco linguístico na introdução à edição que estou a ler [2006].)

sábado, 16 de agosto de 2014

Sobre a arrogância da ciência

Quando o conhecimento científico actual colide com as convicções de alguma pessoa menos inclinada para a curiosidade científica, é comum ouvirmos: “lá vêm a ciência e a sua arrogância!”

Ora, tenho de vos dizer: não encontro qualquer arrogância na ciência enquanto actividade. Que um cientista específico seja pessoalmente arrogante, com certeza que sim: há arrogantes em todo o lado… Também posso concordar que alguns cientistas assumem atitudes arrogantes perante os outros. Mas a ciência em si não é arrogante; é, talvez, a própria encarnação da humildade intelectual.

Para vos explicar o que quero dizer, imaginem uma aldeia onde ocorreu um crime: alguém matou o padre. O presidente da Câmara está absolutamente convencido que foi o professor. Aparece um investigador da cidade e começa por dizer que não sabe quem matou o padre. O presidente da Câmara fica impaciente: 

“Já lhe disse que foi o professor! Tenho a certeza! Basta conhecê-lo!” 

O investigador regista a opinião, mas precisa de provas; não tem certezas. O presidente da Câmara acusa-o de arrogância: 

“Provas? Estou a dizer quem foi! Não precisa de mais investigações nem de provas! O culpado está encontrado.” 

O investigador não desarma e, dias depois, apresenta provas concretas que apontam para o verdadeiro culpado — não deixando de dizer que é a sua teoria, que terá de ser testada em tribunal. O presidente da Câmara não aceita esta teoria. Continua a acusar o investigador de arrogância — e apresenta uma série de dúvidas. O investigador aceita as dúvidas, investiga mais um pouco, responde a essas mesmas dúvidas com dados concretos. O presidente da Câmara irrita-se: 

“Lá continua você com a martelar-me a cabeça com a sua teoria! A verdade é o que eu lhe disse, ponto final! Não seja arrogante!”

Reparem num pormenor: o culpado até podia ser o professor. O investigador não começou o seu trabalho pressupondo que o professor não era o culpado. Provavelmente, até começou por testar essa hipótese...

Mas estou a divagar. A pergunta é esta: quem era o verdadeiro arrogante intelectual nesta pequena história: o presidente da Câmara ou o investigador?


Mas que disparate é este?

Sim, pode parecer um disparate. Quem sou eu, afinal, para escrever um site sobre a explicação do mundo? Não sou ninguém, de facto: mas julgo que qualquer pessoa pode tentar criar um modelo o mais realista possível do mundo em que vive e da humanidade de que faz parte.

Sim, não sou cientista, não sou filósofo, não penso nestas coisas profissionalmente. Mas é um sinal de respeito para com os filósofos, cientistas e outros curiosos profissionais tentar pegar no trabalho deles e tentar chegar a um modelo do mundo que tome em consideração as descobertas de que vou tendo conhecimento.

A minha explicação será sempre incompleta porque eu não sei tudo o que já foi descoberto pela humanidade (não sei quase nada, provavelmente). O objectivo deste site não é apresentar nada de novo: é aprender o que já se sabe para construir um modelo o mais coerente e completo possível (e, se for possível, que possa ser descrito facilmente). Ora, se eu tento reduzir a minha ignorância pessoal, os cientistas, filósofos e demais investigadores tentam expandir um pouco a fronteira do conhecimento de toda a Humanidade — a todos esses dedico este site.

O tempo é pouco: temos de viver e pensar sobre essa vida enquanto ela está a decorrer. Mas vale a pena. Podemos errar (eu, certamente, erro muito e errarei muito neste site), mas tentamos, tentamos sempre, e devagar lá vamos chegando a uma explicação do mundo um pouco mais completa.